Discipulado por Bonhoeffer

O sofrimento e o Discipulado

Dietrich Bonhoeffer

O sofrimento é, pois, a característica dos seguidores de Cristo. O discípulo não está acima de seu mestre. O discipulado é passio passiva, é sofrimento obrigatório. Por isso, Lutero incluiu o sofrimento no rol dos sinais da verdadeira Igreja. Um anteprojeto da Confessio Augustana definiu a Igreja como comunidade dos que são "perseguidos e martirizados por causa do Evangelho". Quem não quiser tomar sobre si a cruz, quem não quiser expor sua vida ao sofrimento e à rejeição por parte dos seres humanos, perde a comunhão com Cristo e não é seu discípulo. Quem, porém, perder sua vida no discipulado, no carregar da cruz, tornará a encontrá-la no próprio discipulado, na comunhão da cruz com Cristo. O oposto do discipulado é envergonhar-se de Cristo, envergonhar-se da cruz, escandalizar-se por causa da cruz.
O discipulado é união com o Cristo sofredor. Por isso, nada há de estranho no sofrimento do cristão; antes, é graça, é alegria. Os relatos sobre os primeiros mártires da Igreja testemunham que Cristo transfigura para os seus o momento extremo do suplício com a certeza indescritível de sua proximidade e comunhão. Assim, nos tormentos mais atrozes sofridos por amor a Cristo, os mártires experimentaram a máxima alegria e bem-aventurança da comunhão com seu Senhor. Suportar a cruz se lhes revelou como a única maneira de triunfar sobre o sofrimento. Isto, porém, aplica-se a todos quantos seguem a Cristo, porque foi igualmente válido para ele.
Adiantando-se um pouco, prostrou-se sobre o seu rosto, orando e dizendo: Meu Pai, se possível, passe de mim esse cálice! Todavia, não como eu quero, e, sim, como tu queres... Tornando a retirar-se, orou de novo, dizendo: Meu Pai, se não é possível passar de mim esse cálice sem que eu o beba, faça-se a tua vontade. (Mt 26.39 e 42).
Jesus pede ao Pai que faça passar aquele cálice; e o Pai ouviu a prece do Filho. O cálice do sofrimento passaria - porém, unicamente ao ser bebido. Jesus sabe isso perfeitamente ao se ajoelhar pela segunda vez no Getsêmani; sabe que o sofrimento passará ao ser suportado. Somente suportando-o é que ele o vencerá e derrotará. A cruz é sua vitória.
Sofrimento é afastamento de Deus. Por isso é que quem se encontra na comunhão de Deus não pode sofrer. Jesus confirmou esta lição do Antigo Testamento. Justamente por essa razão é que ele toma sobre si o sofrimento de todo o mundo, vencendo-o assim. Ele sofre toda a separação de Deus. O cálice passa se for esvaziado. Jesus quer vencer o sofrimento do mundo; por isso, tem que prová-lo até ao extremo. O sofrimento continua a ser afastamento de Deus; porém, na comunhão do sofrimento de Jesus Cristo, o sofrimento é vencido pelo sofrimento, e justamente no sofrimento se experimenta a comunhão com Deus.
O sofrimento precisa ser suportado para que passe. Ou o mundo tem que suportá-lo e sucumbir sob seu peso, ou ele recai sobre Cristo e é vencido por ele. Dessa maneira é que Cristo sofre em lugar do mundo. Exclusivamente o sofrimento de Cristo é sofrimento expiatório. Mas também a Igreja sabe agora que o sofrimento do mundo está à procura de alguém que o tome sobre si. No discipulado de Cristo, tal sofrimento recai sobre a Igreja, e esta o suporta sabendo-se, por sua vez, suportada por Cristo. Ao seguir a Cristo, sob a cruz, a Igreja de Jesus Cristo representa o mundo perante Deus.
Deus é um Deus carregador. O Filho de Deus tomou sobre si nossa carne e, por isso, suportou a cruz, suportou todos os nossos pecados e, por seu carregar, trouxe a reconciliação. Da mesma forma, o discípulo está chamado a levar fardos. Ser cristão consiste em levar fardos. Como Cristo manteve a comunhão do Pai levando fardos, assim também carregar fardos é, para o discípulo, comunhão com Cristo. O ser humano pode livrar-se do fardo que lhe é imposto. Mas, assim procedendo, ele não se liberta propriamente do fardo; antes, passa a levar um fardo ainda mais pesado, mais insuportável. Leva, por livre escolha, o jugo de si mesmo. Jesus convidou a todos os oprimidos por toda sorte de sofrimentos e fardos para os lançarem fora e tomarem sobre si seu jugo, que é suave, e seu fardo, que é leve. Seu jugo e fardo são a cruz. Colocar-se sob essa cruz não significa miséria e desespero, mas é refrigério e descanso para as almas, é a suprema alegria. Aí, então, não andamos mais sob o peso de leis e fardos de feitura própria, mas sob o jugo daquele que nos conhece e caminha a nosso lado sob o mesmo jugo, onde temos a certeza e a proximidade de sua comunhão. É a Cristo que o seguidor encontra ao tomar sobre si sua cruz.
“Isso deve ir não de acordo com teu entendimento, mas acima dele; mergulha na insensatez e dar-te-ei meu entendimento; não saber para onde vais é saber exatamente para onde vais. Meu entendimento torna-te insensato. Assim saiu Abraão de sua pátria sem saber para onde ir. Confiou em minha sabedoria e desistiu de sua própria, e encontrou o caminho certo e o destino certo. Eis o caminho da cruz: tu não o podes achar; eu tenho que guiar-te como a um cego; por isso nem tu, nenhum ser humano, nenhuma criatura, mas eu, eu em pessoa te ensinarei, através de meu Espírito e Palavra, o caminho que deves trilhar. Não a obra que tu escolhes, não o sofrimento que tu imaginas, mas sim o caminho que te é preparado contra tua escolha, contra teu pensamento e desejo - a esse segue, a esse te chamo, nele sê discípulo; é tempo oportuno, teu Mestre chegou”. (Lutero).




Palavra-chave do Discipulado


Dietrich Benhoeffer

Aqui se diz a palavra-chave, na qual se distinguem o ser humano na dissensão e o ser humano na origem: o amor. Há um conhecimento de Cristo, uma poderosa fé em Cristo, há uma mentalidade e dedicação de amor até a morte - sem amor. E isso aí. Sem este "amor" tudo se desfaz e é reprovável; dentro deste amor tudo está unido e é agradável a Deus. O que é este amor?
 
"Ainda que eu tenha o dom de profetizar e conheça todos os mistérios e toda a ciência; ainda que eu tenha tamanha fé ao ponto de transportar montes, se não tiver amor, nada serei. E ainda que eu distribua todos os meus bens entre os pobres, e ainda que entregue o meu próprio corpo para ser queimado, se não tiver amor, nada disso me aproveitará." (1 Co 13.2s.)
 
Excluem-se aqui todas as definições que desejam entender a essência do amor como postura humana, mentalidade, entrega, sacrifício, vontade de comunhão, sentimento, fraternidade, serviço e ação. Tudo isso, sem exceção, pode haver sem "amor", como acabamos de ouvir. Tudo o que estamos acostumados a chamar de amor, o que vive nas profundezas da alma e na ação visível, até aquilo que brota do coração piedoso em termos de fraterno serviço ao próximo, pode estar sem "amor", e isto não porque em todo comportamento humano continua havendo um resto de egoísmo que obscurece completamente o amor, e sim porque amor é algo completamente diferente do que aqui se entende. Amor não é, também, a relação pessoal direta, a compreensão dos aspectos pessoais, do individual em contraste com a lei da objetividade, da ordem impessoal. Além de se separar aqui "pessoal" e "objetivo" de forma abstrata e não-bíblica, o amor se torna aqui um comportamento humano e, pior ainda, apenas parcial. O amor seria, então, um ethos superior de ordem pessoal, que entra como complementação e aperfeiçoamento ao lado do ethos inferior relativo a questões de ordem e objetividade.
Corresponderia a isso, por exemplo, a criação de um conflito entre amor e verdade, de tal modo que se sobreponha o amor, como algo pessoal, à verdade como algo impessoal. Com isto se estaria em flagrante contradição com a palavra de Paulo no sentido de que o amor se regozija com a verdade (1 Co 13.6). O amor justamente não conhece o conflito pelo qual se gostaria de defini-lo; antes, é de sua essência estar além de toda dicotomia. Lutero, com sua clara visão bíblica, chama o amor que fere ou neutraliza a verdade um "amor maldito", ainda que se apresente na mais piedosa roupagem. Um amor que abrange tão-somente o âmbito das relações pessoais, capitulando diante do aspecto objetivo, nunca é o amor que o Novo Testamento prega.
Se não há, portanto, um comportamento humano imaginável que possa ser conceituado inequivocamente como amor; se amor acontece além de toda desunião em que o ser humano vive; se, literalmente, tudo que o ser humano possa entender e praticar como amor só é concebível como comportamento humano dentro da desunião existente, resta um enigma, uma questão aberta, acerca do que possa vir a ser amor para a Bíblia. Ela não nos nega a resposta. Nós a conhecemos muito bem, só que, sempre de novo, a distorcemos. Ela diz: Deus é amor (1 Jo 4.16). Esta frase, a bem da clareza, deve ser lida primeiramente com ênfase na palavra Deus, ao passo que nós nos acostumamos a acentuar a palavra "amor". Deus é amor, ou seja, não um comportamento humano, uma mentalidade, uma ação, mas Deus mesmo é amor. Só sabe o que é amor quem conhece a Deus, não ao inverso: sabendo primeiro, e por natureza, o que é o amor, sabe-se então também o que é Deus.
Ninguém conhece a Deus a não ser que Deus se lhe revele. Conseqüentemente, ninguém sabe o que é amor, a não ser na auto-revelação de Deus. Assim, amor é revelação de Deus. Revelação de Deus, no entanto, é Jesus Cristo. "Nisto se manifestou o amor de Deus por nós, em haver Deus enviado seu Filho unigênito ao mundo, para vivermos por meio dele." (1 Jo 4.9.)
A revelação de Deus em Jesus Cristo, a divina revelação do amor de Deus precede todo o nosso amor a ele. O amor tem sua origem em Deus, não em nós; o amor é postura divina, não comportamento humano. "Nisto consiste o amor, não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou e enviou o seu Filho para o perdão de nossos pecados." (1 Jo 4.10.) O que vem a ser amor só reconhecemos em Jesus Cristo, mais precisamente em sua ação por nós. "Nisto conhecemos o amor, em que Cristo deu a sua vida por nós." (1 Jo 3.16.) Também aqui não se oferece uma definição genérica do amor, no sentido, por exemplo, de que a entrega da vida pelos outros fosse amor. Não o genérico, mas a entrega absolutamente única da vida de Jesus Cristo por nós é qualificada aqui de amor. Amor está ligado de forma indissolúvel ao nome de Jesus Cristo como revelação de Deus.
O Novo Testamento responde de forma muito clara a pergunta o que vem a ser amor apontando exclusivamente para Jesus Cristo. Ele é a única definição do amor. Estaríamos desvirtuando tudo, no entanto, se da contemplação de Jesus Cristo, de sua obra e seu sofrimento, quiséssemos deduzir uma definição genérica do amor. Amor não é o que ele faz e sofre; amor é o que ele faz e sofre. Amor sempre é ele mesmo. Amor sempre é o próprio Deus. Amor sempre é revelação de Deus em Jesus Cristo.
A rigorosa concentração de todos os pensamentos e afirmações a respeito do amor no nome de Jesus Cristo não deve degradá-lo a um conceito abstrato; antes, deve ser entendido sempre na plenitude concreta da realidade histórica de um ser humano de carne e osso. Portanto - mantendo o que dissemos acima -, só a ação e o sofrimento concretos do homem Jesus Cristo tornarão compreensível o que vem a ser amor. O nome "Jesus Cristo", no qual Deus revela a si mesmo, oferece sua auto-interpretação na vida e na mensagem de Jesus Cristo. Afinal, o Novo Testa mento não consiste na infindável repetição do nome de Jesus Cristo; o que este nome abrange é interpretado por acontecimentos, conceitos e afirmações que nos são inteligíveis. Assim, o poder do termo "amor", agapê, não é simplesmente arbitrário.
Por mais que este termo receba um sentido completamente novo através da mensa¬gem do Novo Testamento, não está aí sem relação alguma com o que, em nossa lín¬gua, entendemos por "amor**. Não é assim, contudo, que o conceito bíblico de amor fosse uma forma determinada daquilo que, genericamente, sempre já entendemos por "amor**. Diante do conceito bíblico de amor acontece exatamente o inverso, evidenciando-se que tão-somente ele é a base, a verdade e a realidade do amor, de maneira tal que toda reflexão natural sobre o amor só tem verdade e realidade na medida em que tem sua origem no amor que o próprio Deus é em Jesus Cristo e na medida em que participa deste amor.
À pergunta em que consistiria o amor, continuamos respondendo com a Escritura: na reconciliação do ser humano com Deus em Jesus Cristo. A desunião do ser humano com Deus e com o próximo, com o mundo e consigo mesmo está terminada. Por graça, foi-lhe devolvida a origem.
O amor designa, portanto, a ação de Deus no ser humano através da qual é superada a dicotomia em que o ser humano vive. Esta ação se chama Jesus Cristo, reconciliação. Amor, portanto, é uma coisa que acontece ao ser humano, algo passivo, algo de que ele não dispõe por si mesmo, porque, por definição, está além de sua existência na dissensão. Amor significa sofrer a metamorfose de toda a existência por parte de Deus, ser incorporado ao mundo tal como ele somente pode subsistir diante de Deus e em Deus. Amor não é escolha do ser humano, mas eleição do ser humano por Deus.
Em que sentido, então, pode-se ainda falar do amor como uma ação humana, do amor do ser humano a Deus e ao próximo, como o Novo Testamento o faz com suficiente clareza? O que quer dizer que também o ser humano pode e deve amar diante do fato de que Deus é o amor? "Nós o amamos porque ele nos amou primeiro.' (1 Jo 4.19.) Isto significa que o nosso amor se baseia exclusivamente na circunstância de sermos amados por Deus, em outras palavras, que o nosso amor outra coisa não pode ser do que a aceitação do amor de Deus em Jesus Cristo. "Se alguém ama a Deus é conhecido por ele”. (1 Co 8.3.)
Ser conhecido significa, na linguagem bíblica, "eleito, gerado”. Amar a Deus quer dizer aceitar sua eleição, sua geração em Jesus Cristo. A relação do amor divino e do humano não deve ser entendida como se o primeiro precedesse o segundo com a finalidade de acionar o amor humano como ação independente, livre e própria do ser humano face ao amor de Deus. Ao contrário, também para tudo quanto se possa dizer do amor humano vale que Deus é o amor. E com o amor de Deus, e nenhum outro — porque não há outro amor, autônomo ou livre diante deste -, que o ser humano ama a Deus e ao próximo. Nisto o amor humano permanece totalmente passivo. Amar a Deus é apenas o anverso do ser amado por Deus. O amor de Deus inclui o amor a Deus; o amor a Deus não se justapõe ao ser amado por Deus.
Para elucidar isto é preciso uma palavra esclarecedora, neste contexto, sobre o conceito de passividade. Trata-se aqui - como sempre que na teologia se fala da passividade humana! - de um conceito teológico e não psicológico, visando a existência do ser humano diante de Deus. Passividade face ao amor de Deus não significa descanso no amor de Deus sob exclusão de pensamentos, palavras e ações, como se ele só me seria dado nestas "horas de calma". O amor de Deus não é apenas aquele porto de refúgio onde posso me abrigar do mar grosso. Ser amado por Deus de modo algum proíbe ao ser humano pensamentos fortes e ações alentadas. Somos amados e reconciliados por Deus em Cristo como seres humanos inteiros. É como seres humanos inteiros, raciocinando e agindo, que amamos a Deus e aos irmãos.




O Discipulado e o indivíduo

Dietrich Behoenffer


Se alguém vem a mim, e não aborrece a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs e ainda a sua própria vida, não pode ser meu discípulo. (Lc 14.26).

O chamado de Jesus ao discipulado faz do discípulo um indivíduo. Querendo ou não, ele tem que se decidir, tem que tomar sua decisão sozinho. Não é indivíduo espontaneamente; Cristo é que faz do ser humano chamado um indivíduo. Cada qual é chamado individualmente e tem que ser discípulo sozinho. Com receio desta solidão, o ser humano procura proteção junto às pessoas e coisas que o cercam. Apercebe-se, de súbito, de todas as suas responsabilidades e apega-se a elas. Encoberto por elas, deseja tomar sua decisão, mas não quer encontrar-se sozinho perante Jesus e ter que decidir-se com o olhar fixo somente nele. Mas, nesta hora, o ser humano chamado não pode ocultar-se por detrás de pai e mãe, mulher e filhos, povo e história. Cristo quer que o ser humano fique só, que nada mais enxergue senão aquele que o chamou.
No chamado de Jesus, encontra-se já realizado o rompimento com as circunstâncias naturais em que o ser humano vive. Não é o discípulo que provoca esse rompimento, mas o próprio Cristo já o concretizou ao pronunciar seu chamado. Cristo libertou o ser humano de sua relação imediata com o mundo e o transportou para uma relação imediata consigo mesmo. Ninguém pode seguir a Cristo sem que reconheça e confirme o rompimento já realizado. Não é a arbitrariedade de uma vida em teimosia, mas é o próprio Cristo que conduz o discípulo a este rompimento.
Por que isso precisa ser assim? Por que não haveria um crescimento contínuo, uma transição lenta, santificante, das ordens naturais para dentro da comunhão de Cristo? Qual o poder incômodo que vem se interpor entre o ser humano e as ordens de sua vida natural dadas por Deus? Não seria este rompimento um metodismo legalista? Não constitui ele o triste desprezo dos belos dons de Deus, que nada tem em comum com a liberdade cristã? De fato, algo se interpõe entre a pessoa que é chamada por Cristo e as circunstâncias de sua vida natural. No entanto, não se trata, de forma alguma, de um triste desprezador da vida, de uma lei da piedade; antes, é a vida, é o próprio Evangelho, o próprio Cristo. Com sua encarnação, Cristo colocou-se entre mim e as circunstâncias do mundo. Já não posso recuar: ele está de permeio. Privou a pessoa que foi chamada da relação imediata com tais circunstâncias. Ele quer ser o mediador, e tudo deve se processar através dele. Não se coloca apenas entre mim e Deus, mas está igualmente entre mim e o mundo, entre mim e os outros seres humanos e coisas. Ele é o Mediador, e isso não somente entre Deus e os seres humanos, mas também entre ser humano e ser humano, e entre o ser humano e a realidade. Porque todo o mundo foi criado através dele e para ele (Jo 1.3; 1 Co 8.6; Hb 1.2), ele é o único Mediador do mundo inteiro. Desde Cristo já não há nenhuma relação imediata, quer entre o ser humano e Deus, quer entre o ser humano e o mundo; Cristo quer ser o Mediador. É certo que se oferecem bastantes deuses que concedem ao ser humano um acesso imediato; o mundo procura, por todos os meios, ter uma relação imediata com o ser humano, mas é justamente nesse ponto que reside a inimizade contra Cristo, o Mediador. Tais deuses e o mundo querem arrebatar de Cristo o que ele lhes tirou, a exclusividade do relacionamento imediato com o ser humano.
O rompimento com as coisas imediatas do mundo nada mais é do que o reconhecimento de Cristo como Filho de Deus e Mediador. Nunca é um ato voluntário em que, por amor de qualquer ideal, um ser humano se liberta dos laços que o prendem ao mundo, um ideal menor que se troca por outro maior. Isso seria espírito entusiasta, arbitrariedade, sim, uma vez mais, uma relação imediata com o mundo. Somente o reconhecimento do fato consumado, é, que Cristo é o Mediador, separa o discípulo de Jesus do mundo dos seres humanos e das coisas. O chamado de Jesus, quando não compreendido como ideal, mas como Palavra do Mediador, realiza em mim esse rompimento já realizado com o mundo. Caso se tratasse de avaliação de ideais, sempre seria preciso procurar uma compensação, que, talvez, fosse a opção por um ideal cristão, mas que nunca poderia ser unilateral. Do ponto de vista do ideal, das "responsabilidades" da vida, não se justificaria uma desvalorização radical das ordens naturais da vida em relação ao ideal de vida cristão. Haveria, até, muito que dizer a favor de uma avaliação inversa - justamente, note-se, do ponto de vista de um idealismo cristão, de uma ética da responsabilidade ou consciência cristã! Todavia, como, de forma de ideais, avaliações ou responsabilidades, mas sim de fatos consumados e de seu reconhecimento, ou seja, da pessoa do próprio Mediador que se ergue entre nós e o mundo, por isso é que somente existe o rompimento com as coisas imediatas do mundo, por isso o discípulo deve tornar-se indivíduo perante o Mediador.
A pessoa que foi chamada por Jesus aprende, assim, que tem vivido iludida na sua relação com o mundo. Essa ilusão chama-se "relação imediata". Esta ilusão prejudicou-a na fé e na obediência. Agora, porém, sabe que já não pode ter relações imediatas nem nos laços mais estreitos de sua vida, nos laços de sangue com pai e mãe, com os filhos, irmãos e irmãs, no amor conjugai, nas responsabilidades históricas. Desde Jesus, já não existem para seus discípulos quaisquer relações imediatas naturais, históricas ou empíricas. Entre pai e filho, marido e mulher, entre o indivíduo e o povo, ergue-se Cristo, o Mediador, quer consigam reconhecê-lo, quer não. Não há para nós qualquer caminho ao semelhante que não seja o caminho através de Cristo, da sua Palavra e de nosso discipulado. A relação imediata é ilusão.
Como, porém, a ilusão merece ser odiada por nos ocultar a verdade, a relação imediata com as circunstâncias naturais da vida deve ser odiada por amor do Mediador, Jesus Cristo. Sempre que uma relação nos impeça de nos encontrarmos com Cristo como indivíduo, sempre que uma comunhão reivindique relações imediatas, deve ser odiada por amor de Cristo, pois cada relação imediata, consciente ou inconsciente, é ódio a Cristo, ao Mediador, até mesmo e em especial quando quer ser considerada cristã.
A teologia erra grandemente quando se serve da mediação de Jesus entre Deus e os seres humanos para justificar as relações imediatas da vida. Se Cristo é o Mediador, diz-se, então carregou os pecados de todas as nossas relações imediatas com o mundo, justificando-nos nelas. Jesus é nosso Mediador para com Deus, para que, em sã consciência, possamos nos colocar novamente numa relação imediata com o mundo - esse mundo que crucificou a Jesus. Assim, o amor de Deus e o amor do mundo são reduzidos ao mesmo denominador. O rompimento com as circunstâncias do mundo transforma-se num mal-entendido "legalista" da graça de Deus, que queria poupar-nos justamente deste rompimento. As palavras de Jesus sobre o ódio às relações imediatas transformam-se, muito naturalmente, na alegre confirmação das "realidades do mundo dadas por Deus". A justificação do pecador converte-se, uma vez mais, em justificação do pecado.
Para o discípulo de Jesus, "realidades dadas por Deus" somente existem através de Jesus Cristo. Aquilo que não me é dado através de Cristo feito ser humano não me foi dado por Deus. O que não me é dado por amor de Cristo não vem de Deus. O agradecimento pelos dons da criação acontece através de Jesus Cristo, e a prece pela conservação graciosa desta vida realiza-se por amor dele. Aquilo pelo qual não posso agradecer por amor de Cristo, não o devo agradecer de modo algum, pois isso se torna pecado para mim. Também o caminho para "a realidade dada por Deus", que é meu semelhante com o qual convivo, passa por Cristo, ou então é um caminho transviado. Todas as nossas tentativas para lançar uma ponte sobre o abismo que nos separa dos outros, de vencer, por meio de laços naturais ou da alma, a distância intransponível, o caráter diferente e estranho dos outros seres humanos, todas essas tentativas têm que fracassar. Não há um caminho próprio de ser humano para ser humano. A mais amável tentativa de compreensão, a psicologia mais sofisticada, a franqueza mais natural não conduzem ao outro; não há qualquer relação imediata entre as almas. Cristo é o Mediador, e somente através dele é que há caminho para o próximo. Por isso: a intercessão é o caminho mais promissor para chegarmos aos outros, e a oração conjunta em nome de Cristo constitui a mais genuína comunhão.
Não há qualquer conhecimento verdadeiro dos dons de Deus sem o conhecimento do Mediador, por amor do qual tão-somente eles nos são dados. Não há nenhuma ação de graças genuína por povo, família, história e natureza sem um profundo arrependimento que dá exclusivamente a Cristo a honra suprema. Não há relação genuína com as realidades circunstanciais do mundo criado, não há responsabilidades genuínas no mundo, sem o reconhecimento do rompimento que já nos separou do mundo. Não há amor genuíno pelo mundo a não ser aquele amor com que Deus amou este mundo em Jesus Cristo. "Não amem o mundo" (1 Jo 2.15), mas: "Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna." (Jo 3.16).
É inevitável o rompimento com as relações imediatas. Se ele se realiza externamente, no rompimento com a família ou com o povo, ou sendo chamados a ostentar visivelmente o opróbrio de Cristo, a tomar sobre nós a acusação de misantropia (odium generis humani [ódio ao gênero humano]), ou se o rompimento permanece oculto, conhecido apenas por nós mesmos, mas com o espírito pronto a torná-lo visível a todo momento - isso não constitui diferença definitiva. Abraão constituiu-se no modelo para ambas as possibilidades. Teve que abandonar suas amizades e a casa paterna; Cristo colocou-se entre ele e seus parentes. O rompimento teve que tornar-se visível. Abraão tornou-se forasteiro por amor da terra prometida. Foi esse seu primeiro chamado. Mais tarde, Abraão recebeu a ordem de sacrificar seu filho Isaque. Cristo ergueu-se entre o pai da fé e o filho da promessa. Foi destruída aqui não somente a relação imediata natural, mas também a própria relação imediata espiritual. Abraão tinha que aprender que a promessa também não depende de Isaque, mas exclusivamente de Deus. Ninguém toma conhecimento deste chamado, nem mesmo os servos que acompanham Abraão ao local do holocausto. Abraão fica completamente só. Uma vez mais, ele é totalmente indivíduo, como quando saiu da casa paterna. Aceita o chamado tal como foi pronunciado; não procura interpretá-lo ou espiritualizá-lo; aceita a palavra de Deus e está pronto a obedecer. Contra toda relação imediata natural, contra toda relação imediata ética, contra toda relação imediata religiosa, ele vai ser obediente à Palavra de Deus. Leva o filho para o sacrificar; está disposto a concretizar de modo visível esse rompimento oculto, por amor do Mediador. Na mesma hora, torna a receber tudo aquilo que havia dado. Abraão recebe novamente o filho. Deus mostra-lhe uma vítima melhor que deverá substituir Isaque. Isso é uma mudança total. Abraão tornou a receber Isaque, mas passa a tê-lo de forma diferente. Tem-no, agora, graças ao Mediador, e também por amor dele. Como aquele que estava pronto a escutar e a pôr literalmente em prática a ordem de Deus, pode ter Isaque como se não o tivesse, pode tê-lo através de Cristo. Ninguém mais sabe disso. Abraão volta da montanha na companhia de Isaque, tal como subira, tudo, porém, estava mudado. Cristo se colocara entre pai e filho. Abraão tinha abandonado tudo e seguira a Cristo. E, no meio do discipulado, se permite a ele tornar a viver no mundo em que vivia antes. Exteriormente, tudo ficou como antes. Porém, as coisas antigas já passaram e tudo se fez novo. Tudo teve que passar através de Cristo.
Esta é a outra possibilidade de ser indivíduo, de ser discípulo de Cristo no seio da comunidade, no meio do povo, na casa paterna, no contato com os bens e a propriedade. Mas quem foi chamado a essa existência foi Abraão, aquele que antes atravessara ele próprio a barreira do rompimento visível, e cuja fé se tornou padrão para o Novo Testamento. Gostaríamos muito de generalizar esta possibilidade de Abraão, gostaríamos de entendê-la de maneira legalista, e, colocarmo-nos, sem mais nem menos, a nós próprios nesta situação. Esta também seria exatamente nossa existência cristã: seguir a Cristo em plena posse de nossos bens materiais e assim ser indivíduo. Certo, porém, é que o caminho do rompimento externo é bem mais fácil para o cristão do que carregar silenciosamente este rompimento na fé. Quem não sabe estas coisas, quem não o aprendeu através das Escrituras ou da experiência, engana-se com certeza ao enveredar pelo outro caminho. Cairá, de novo, na relação direta e perderá a Cristo.
Nós não temos liberdade de escolher esta ou aquela possibilidade. De acordo com a vontade de Jesus, seremos arrancados da relação imediata de uma ou de outra forma e deveremos tornar-nos indivíduos, visível ou ocultamente.
O mesmo Mediador, porém, que nos fez indivíduos constitui também o fundamento de uma comunhão totalmente nova. Ele está entre mim e os outros. Separa, mas une também. E certo que, assim, fica cortado todo e qualquer caminho imediato de mim para alguém outro; o discípulo, porém, aprende o novo e verdadeiro acesso ao semelhante, que, a partir de agora, passará pelo Mediador.
Então Pedro começou a dizer-lhe: Eis que nós tudo deixamos e te seguimos. Tomou Jesus: Em verdade lhes digo que ninguém há que tenha deixado casa, ou irmãos, ou irmãs, ou mãe, ou pai, ou filhos, ou campos, por amor de mim e por amor do evangelho, que não receba, já no presente, o cêntuplo de casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, com perseguições; e no mundo por vir a vida eterna. Porém, muitos primeiros serão últimos; e os últimos, primeiros. (Mc 10.28-31).
Jesus está falando aqui a pessoas que se tornaram indivíduos por amor dele, que, a seu chamado, tudo abandonaram e podem afirmar a respeito de si mesmas: "Eis que nós tudo deixamos e te seguimos". A estas é dada a promessa de uma nova comunhão. De acordo com as palavras de Jesus, receberão, já neste tempo, o cêntuplo do que abandonaram. Jesus refere-se à sua Igreja, que se encontra nele. Quem abandona seu pai por amor de Jesus encontra, com certeza, outro pai, encontra irmãos e irmãs, sim, até mesmo campos e casas lhe estão preparados. Todos entram sozinhos no discipulado, mas ninguém fica sozinho nele. A pessoa que ousa tomar-se indivíduo, confiante na Palavra, recebe a comunhão da Igreja. Toma a encontrar-se numa comunhão visível, que a compensa cem vezes por aquilo que perdeu. Cem vezes? Sim, pelo fato de, agora, ter tudo tão-somente através de Jesus, do Mediador, o que naturalmente significa "com perseguições". "Cem vezes" - "com perseguições", esta é a graça da Igreja que segue o Senhor sob a cruz. Esta é, pois, a promessa para os discípulos, a de se tomarem membros da comunidade da cruz, povo do Mediador, povo sob a cruz.
Estavam de caminho para Jerusalém, e Jesus ia adiante dos seus discípulos. Estes se admiravam e o seguiam tomados de apreensões. E Jesus, tornando a levar à parte os doze, passou a revelar-lhes as coisas que lhe deviam sobrevir. (Mc 10.32).
Como para confirmar a seriedade de seu chamado ao discipulado e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de ser discípulo por forças próprias e ainda a promessa de lhe pertencerem sob muitas perseguições, Jesus sobe para Jerusalém, para a cruz, e os que o seguem admiram-se e espantam-se com o caminho para o qual os chama. 



O Discipulado e a Cruz


O pastor Bonhoeffer foi martirizado aos 39 anos-
Então começou ele a ensinar-lhes que era necessário que o Filho do homem sofresse muitas coisas, fosse rejeitado pelos anciãos... (Mc 8.31-38).

O chamado ao discipulado está, aqui, no contexto do anúncio da Paixão de Jesus. Jesus está para sofrer e ser rejeitado. É esse o imperativo da promessa de Deus, para que se cumpram as Escrituras. Paixão e rejeição não são a mesma coisa. Jesus podia ser o Cristo festejado ainda na Paixão. Em sua Paixão poderiam concentrar-se toda a piedade e ad¬miração do mundo. A Paixão como acontecimento trágico poderia ainda ter valor próprio, honra e dignidade própria. Jesus, porém, é o Cristo rejeitado na Paixão. A rejeição tira da Paixão toda a dignidade e honra. Ela deve ser sofrimento sem honra. Paixão e rejeição, eis em resumo a definição da cruz de Jesus. Ser crucificado é sinônimo de sofrer e morrer rejeitado e repudiado por força da necessidade divina. Qualquer tentati¬va de impedir o que é necessário é satânica, mesmo que esta tentativa provenha do círculo dos discípulos (o que é uma agravante), pois assim não se quer permitir que Cristo seja Cristo. O fato de ser justamente Pedro, a Rocha da Igreja, a tornar-se culpado, logo após sua confissão de Jesus como o Cristo e de sua instalação, revela que, logo de início, a Igreja se escandalizou com o Cristo sofredor. Ela não quer semelhante Senhor e, como Igreja de Cristo, não quer permitir que ele lhe imponha a lei do sofrimento. O protesto de Pedro exprime sua relutância em se dispor a sofrer. Deste modo é que Satanás entrou na Igreja, pretendendo arrancá-la à cruz de seu Senhor.
Jesus, portanto, viu-se na contingência de esclarecer de modo in¬sofismável que o imperativo do sofrimento era extensivo aos discípulos. Assim como o Cristo somente é Cristo quando sofredor e rejeitado, tam¬bém o discípulo somente é discípulo quando sofredor e rejeitado, cruci¬ficado com Cristo. O discipulado como união com a pessoa de Jesus Cristo coloca o discípulo sob a lei de Cristo, ou seja, sob a cruz.
Porém, ao comunicar esta verdade inalienável a seus discípulos, Jesus começa por lhes dar plena liberdade, o que é digno de nota. "Se alguém quiser vir após mim...", diz Jesus. Não é algo óbvio, nem mes¬mo entre os discípulos. Ninguém pode ser forçado a isso, nem mesmo se pode esperar que alguém o faça; antes: "se alguém quiser" segui-lo, a despeito de quaisquer outras ofertas que lhe sejam feitas. Uma vez mais, tudo depende da decisão individual; em pleno discipulado, toda a carrei¬ra é, uma vez mais, interrompida, tudo fica em aberto, nada se espera, nada se impõe. Tão incisivo é o que agora se vai dizer que, uma vez mais, antes de se anunciar a lei do discipulado, os próprios discípulos têm que sentir-se em liberdade.
"Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue." Assim como Pedro disse com relação a Cristo: "Não conheço esse homem", deverá o discípulo dizer em relação a si mesmo. A autonegação jamais pode con¬sistir de uma série, por longa que seja, de atos avulsos de auto-martirização ou de exercícios ascéticos; autonegação não é suicídio, porque ain¬da aí a vontade do ser humano pode impor-se. A autonegação consiste em conhecer apenas a Cristo, e não mais a si próprio; em ver somente aquele que segue em frente sem olharmos o caminho que julgamos tão difícil. A autonegação diz apenas isso: ele vai na frente; apega-te a ele.
"... tome a sua cruz". Jesus, em sua graça, preparou os discípulos para o impacto destas palavras através do ensino da autonegação. Só após termos esquecido real e totalmente a nós próprios, somente após não nos conhecermos mais a nós mesmos, é que poderemos estar pron¬tos para levar a cruz por amor a ele. Se conhecermos tão-somente a ele, não conheceremos mais as dores de nossa cruz, pois só a Jesus é que veremos. Se ele não nos tivesse bondosamente preparado para ouvirmos estas palavras, não as poderíamos suportar. Todavia, assim ele nos deu condições de aceitar também esta dura palavra como gra¬ça. Tal palavra nos encontra na alegria do discipulado e nele nos con¬firma.
A cruz não é desventura nem pesado destino; é o sofrimento que resulta da união exclusiva com Cristo. A cruz não é sofrimento casual, mas sofrimento necessário. A cruz não é sofrimento relacionado com a existência natural, mas com o fato de pertencermos a Cristo. A cruz não é, essencialmente, apenas sofrimento, mas sim sofrimento e rejeição -rejeição no sentido rigoroso, rejeição por amor de Jesus Cristo, e não em conseqüência de qualquer outra atitude ou confissão. Um cristianismo que não vinha mais tomando o discipulado a sério, que transformara o Evangelho no consolo da graça barata e para o qual a existência natural e a existência cristã estavam inseparavelmente misturadas, tal cristianis¬mo tinha que considerar a cruz uma desventura diária, uma tribulação e angústia de nossa vida natural. Esqueceu-se que cruz significa sempre também rejeição, que o opróbrio do sofrimento é inerente à cruz. Ser rejeitado no sofrimento, desprezado e abandonado pelos seres humanos, como se lamenta tanto o Salmista, eis a característica essencial do sofri¬mento da cruz que já não é compreensível a uma cristandade incapaz de distinguir entre existência civil e existência cristã. A cruz é a compaixão com Cristo, sofrer com Cristo. Somente a união com Cristo, tal como esta se verifica no discipulado, está, de fato, sob a cruz.
"... tome a sua cruz." Ela já está preparada desde o início; falta apenas levá-la. Porém, para que ninguém pense que tem que sair à pro¬cura de uma cruz qualquer, seja onde for, ou que deve procurar volunta¬riamente o sofrimento, Jesus diz que existe uma cruz já preparada para cada um de nós, uma cruz a nós destinada e atribuída por Deus. Cada qual tem que suportar a medida de sofrimento e rejeição que lhe é reser¬vada. Essa medida varia de pessoa para pessoa, pois a um Deus honra com maior sofrimento, dando-lhe, inclusive, a graça do martírio; a ou¬tro, porém, não permite que seja tentado além de suas forças. No entan¬to, a cruz é uma só.
A cruz é imposta a cada crente. O primeiro sofrimento com Cristo, ao qual ninguém escapa, é o chamado que nos chama para fora das vinculações com o mundo. E a morte do velho ser humano no encontro com Jesus Cristo. Quem entra no discipulado entrega-se à morte de Jesus, expõe sua vida à morte. Isso é assim desde o princípio; a cruz não é o cruz da qual me tornei participante. Assim o chamado de Jesus para levarmos nossa cruz coloca cada discípulo na comunhão do perdão dos pecados. O perdão dos pecados é o sofrimento de Cristo ordenado ao discípulo, imposto a todos os cristãos.
Como, porém, saberá o discípulo qual é sua cruz? Ele a receberá ao entrar no discipulado do Senhor sofredor; na comunhão de Jesus, reconhecerá sua cruz.
O sofrimento é, pois, a característica dos seguidores de Cristo. O discípulo não está acima de seu mestre. O discipulado é passio passiva, é sofrimento obrigatório. Por isso, Lutero incluiu o sofrimento no rol dos sinais da verdadeira Igreja. Um anteprojeto da Confessio Augustana definiu a Igreja como comunidade dos que são "perseguidos e martirizados por causa do Evangelho". Quem não quiser tomar sobre si a cruz, quem não quiser expor sua vida ao sofrimento e à rejeição por parte dos seres humanos, perde a comunhão com Cristo e não é seu discípulo. Quem, porém, perder sua vida no discipulado, no carregar da cruz, tor¬nará a encontrá-la no próprio discipulado, na comunhão da cruz com Cristo. O oposto do discipulado é envergonhar-se de Cristo, envergo¬nhar-se da cruz, escandalizar-se por causa da cruz.
O discipulado é união com o Cristo sofredor. Por isso, nada há de estranho no sofrimento do cristão; antes, é graça, é alegria. Os relatos sobre os primeiros mártires da Igreja testemunham que Cristo transfigu¬ra para os seus o momento extremo do suplício com a certeza indescrití¬vel de sua proximidade e comunhão. Assim, nos tormentos mais atrozes sofridos por amor a Cristo, os mártires experimentaram a máxima ale¬gria e bem-aventurança da comunhão com seu Senhor. Suportar a cruz se lhes revelou como a única maneira de triunfar sobre o sofrimento. Isto, porém, aplica-se a todos quantos seguem a Cristo, porque foi igual¬mente válido para ele.
Adiantando-se um pouco, prostrou-se sobre o seu rosto, orando e dizen¬do: Meu Pai, se possível, passe de mim esse cálice! Todavia, não como eu quero, e, sim, como tu queres... Tornando a retirar-se, orou de novo, dizendo: Meu Pai, se não é possível passar de mim esse cálice sem que eu o beba, faça-se a tua vontade. (Mt 26.39 e 42).
Jesus pede ao Pai que faça passar aquele cálice; e o Pai ouviu a prece do Filho. O cálice do sofrimento passaria - porém, unicamente ao ser bebido. Jesus sabe isso perfeitamente ao se ajoelhar pela segunda vez no Getsêmani; sabe que o sofrimento passará ao ser suportado. So¬mente suportando-o é que ele o vencerá e derrotará. A cruz é sua vitória.
Sofrimento é afastamento de Deus. Por isso é que quem se encon¬tra na comunhão de Deus não pode sofrer. Jesus confirmou esta lição do Antigo Testamento. Justamente por essa razão é que ele toma sobre si o sofrimento de todo o mundo, vencendo-o assim. Ele sofre toda a separa¬ção de Deus. O cálice passa se for esvaziado. Jesus quer vencer o sofri¬mento do mundo; por isso, tem que prová-lo até ao extremo. O sofri¬mento continua a ser afastamento de Deus; porém, na comunhão do so¬frimento de Jesus Cristo, o sofrimento é vencido pelo sofrimento, e jus¬tamente no sofrimento se experimenta a comunhão com Deus.
O sofrimento precisa ser suportado para que passe. Ou o mundo tem que suportá-lo e sucumbir sob seu peso, ou ele recai sobre Cristo e é vencido por ele. Dessa maneira é que Cristo sofre em lugar do mundo. Exclusivamente o sofrimento de Cristo é sofrimento expiatório. Mas também a Igreja sabe agora que o sofrimento do mundo está à procura de alguém que o tome sobre si. No discipulado de Cristo, tal sofrimento recai sobre a Igreja, e esta o suporta sabendo-se, por sua vez, suportada por Cristo. Ao seguir a Cristo, sob a cruz, a Igreja de Jesus Cristo repre¬senta o mundo perante Deus.
Deus é um Deus carregador. O Filho de Deus tomou sobre si nossa carne e, por isso, suportou a cruz, suportou todos os nossos pecados e, por seu carregar, trouxe a reconciliação. Da mesma forma, o discípulo está chamado a levar fardos. Ser cristão consiste em levar fardos. Como Cristo manteve a comunhão do Pai levando fardos, assim também carre¬gar fardos é, para o discípulo, comunhão com Cristo. O ser humano pode livrar-se do fardo que lhe é imposto. Mas, assim procedendo, ele não se liberta propriamente do fardo; antes, passa a levar um fardo ainda mais pesado, mais insuportável. Leva, por livre escolha, o jugo de si mesmo. Jesus convidou a todos os oprimidos por toda sorte de sofri¬mentos e fardos para os lançarem fora e tomarem sobre si seu jugo, que é suave, e seu fardo, que é leve. Seu jugo e fardo são a cruz. Colocar-se sob essa cruz não significa miséria e desespero, mas é refrigério e des¬canso para as almas, é a suprema alegria. Aí, então, não andamos mais sob o peso de leis e fardos de feitura própria, mas sob o jugo daquele que nos conhece e caminha a nosso lado sob o mesmo jugo, onde temos a certeza e a proximidade de sua comunhão, É a Cristo que o seguidor encontra ao tomar sobre si sua cruz.
certeza e a proximidade de sua comunhão, É a Cristo que o seguidor encontra ao tomar sobre si sua cruz.
 
Isso deve ir não de acordo com teu entendimento, mas acima dele; mer¬gulha na insensatez e dar-te-ei meu entendimento; não saber para onde vais é saber exatamente para onde vais. Meu entendimento torna-te in¬sensato. Assim saiu Abraão de sua pátria sem saber para onde ir. Con¬fiou em minha sabedoria e desistiu de sua própria, e encontrou o cami¬nho certo e o destino certo. Eis o caminho da cruz: tu não o podes achar; eu tenho que guiar-te como a um cego; por isso nem tu, nenhum ser humano, nenhuma criatura, mas eu, eu em pessoa te ensinarei, através de meu Espírito e Palavra, o caminho que deves trilhar. Não a obra que tu escolhes, não o sofrimento que tu imaginas, mas sim o caminho que te é preparado contra tua escolha, contra teu pensamento e desejo - a esse segue, a esse te chamo, nele sê discípulo; é tempo oportuno, teu Mestre chegou. (Lutero)



Discipulado sem restrições



Quando as Escrituras Sagradas falam do discipulado de Jesus, proclamam a libertação do homem de todos os preceitos humanos, de tudo quanto oprime, sobrecarrega, provoca preocupações e tormentos à consciência. No discipulado, o ser humano sai de sob o jugo de suas próprias leis, e submete-se ao jugo suave de Jesus Cristo. Seria isso menosprezo da seriedade dos mandamentos de Jesus? Não. Antes, somente onde permanece de pé o mandamento integral de Jesus, o chamado ao discipulado sem restrições, é que se torna possível a plena libertação do homem para a comunhão em Jesus. Quem segue indiviso ao mandamento de Jesus, quem se sujeita sem resistência ao jugo de Jesus, a este se lhe torna leve o fardo que tem de levar, recebendo, na suave pressão desse jugo, a força necessária para percorrer o caminho certo sem cansaço. O mandamento de Jesus é duro, desumanamente duro para aquele que se lhe opõe. O mandamento de Jesus é suave e fácil para aquele que voluntariamente se lhe sujeita. “Os seus mandamentos não são penosos” (1ª Pedro 5:3). O mandamento de Jesus nada tem que ver com curas psicológicas violentas. Jesus nada nos exige sem nos dar forças para o realizar. O mandamento de Jesus jamais destruirá a vida, mas a conservará, fortalecê-la-á e a sanará.


O chamado ao discipulado

-Bonhoeffer foi martirizado pelos nazistas em 1945-
Quando ia passando, viu a Levi, filho de Alfeu, sentado na coletoria, e disse-lhe: Segue-me! Ele se levantou e o seguiu. (Mc 2.14).
Soa o chamado, e imediatamente segue o ato obediente da pessoa que foi chamada. A resposta do discípulo não é uma confissão oral da fé em Jesus, mas sim um ato de obediência. Como é possível essa seqüência imediata de chamado e obediência? Para a razão natural, isso é cho¬cante, e ela se esforça para separar estes elementos tão intimamente li¬gados; é preciso interpolar, explicar qualquer coisa; seja como for, é preciso encontrar uma intermediação psicológica, histórica. Pergunta-se tolamente se o publicano não conhecia a Jesus antes, estando, assim, já preparado para segui-lo tão logo ouvisse o chamado. O texto, porém, mantém-se teimosamente mudo acerca deste ponto, dando toda a ênfase à seqüência imediata de chamado e ação. Não lhe interessam razões psicológicas para explicar as decisões piedosas de um ser humano. Por que não? Porque para esta seqüência de chamado e ação só existe uma razão válida: o próprio Jesus Cristo. É ele quem chama, e, por isso, o publicano o segue. Neste encontro é testemunhada a autoridade de Jesus, que € incondicional, imediata e sem explicações. Nada o precede e nada lhe segue senão a obediência da pessoa que foi chamada. O fato de Jesus ser o Cristo dá-lhe todo o poder para chamar e exigir obediência à sua palavra. Jesus chama ao discipulado não como ensinador e exem¬plo, mas em sua qualidade de Cristo, Filho de Deus. Assim, neste breve trecho, anuncia-se Jesus Cristo e o que ele espera do ser humano, e nada mais. Nenhum louvor cabe ao discípulo por seu cristianismo decidido. O olhar não deve pousar sobre ele, mas somente sobre aquele que chama e sobre sua autoridade. Não se aponta tampouco um caminho para a fé, para o discipulado; não há qualquer outro caminho para a fé senão o da obediência ao chamado de Jesus.
Que sabemos a respeito do conteúdo do discipulado? Segue-me! Vai andando atrás de mim! Eis tudo. Segui-lo, eis uma coisa sem conteúdo. Isso de fato não constitui um programa de vida cuja realização fizesse sentido. Não é um objetivo, um ideal pelo qual se deva lutar; nem é algo que, pelos padrões humanos, mereça o sacrifício de qualquer coisa ou de nós próprios. E o que acontece? O ser humano que foi chamado larga tudo quanto tem, não para fazer algo que tenha valor especi¬al, mas simplesmente por causa daquele chamado, porque, de outro modo, não pode seguir os passos de Jesus. A esse ato não se atribui o menor valor. Em si, continua sendo uma coisa absolutamente destituída de im¬portância, sem merecer atenção. Destruíram-se as pontes e simplesmen¬te caminha-se em frente. Uma vez chamada para fora, a pessoa tem que abandonar a existência anterior, tem que simplesmente "existir" no sen¬tido rigoroso da palavra. O que é velho fica para trás, totalmente aban¬donado.
O discípulo é arrancado de sua relativa segurança de vida e lançado à incerteza completa (i. é, na verdade, para a absoluta segurança e proteção da comunhão com Jesus); de uma situação previsível e calculável ( é, na verdade, de uma situação totalmente imprevisível) para den¬tro do imprevisível e fortuito (na verdade, para dentro do único que é necessário e previsível); do domínio das possibilidades finitas (i. é, na realidade, das possibilidades infinitas) para o domínio das possibilida¬des infinitas (i. é, na verdade, para a única realidade libertadora). Uma vez mais, não se trata de uma lei de caráter geral, e sim do exato oposto de todo legalismo. Repetimos, nada mais é senão estar ligado tão-so¬mente a Jesus Cristo, ou seja, a subversão completa de todo programatismo, de todo ideal, de todo legalismo. Por Jesus ser o único conteúdo, não pode haver qualquer outro. Ao lado de Jesus não há mais quaisquer outros conteúdos neste caso, pois ele próprio é o único conteúdo.
O chamado ao discipulado é, portanto, comprometimento exclusivo com a pessoa de Jesus Cristo, a subversão de todos os legalismos mediante a graça daquele que chama. É chamado da graça, mandamento gracioso. Fica além do antagonismo de lei e Evangelho. Cristo chama, o discípulo segue; isso é graça e mandamento ao mesmo tempo. “E andarei com largueza, pois me empenho pelos teus preceitos." (SI 119. 45).
O discipulado é comprometimento com Cristo; por Cristo existir, tem que haver discipulado. Uma concepção de Cristo, um sistema doutrinário, um conhecimento religioso geral da graça ou do perdão não implicam necessariamente o discipulado; na realidade, excluem-no, são hostis a ele. Com a idéia pode-se ter uma relação de conhecimento, de admiração - talvez até mesmo de realização -, mas nunca a relação de discipulado pessoal e obediente. Cristianismo sem Jesus Cristo vivo permanece necessariamente um cristianismo sem discipulado; e cristia¬nismo sem discipulado é sempre cristianismo sem Jesus Cristo; é uma idéia, um mito. Um cristianismo no qual só existe Deus Pai, mas não existe Cristo como Filho vivo, exclui o discipulado. Somente porque o Filho de Deus tornou-se ser humano, por ele ser Mediador, é que o dis¬cipulado constitui o relacionamento correto com ele. O discipulado está vinculado ao Mediador, e, onde quer que se fale corretamente do disci¬pulado, aí se fala do Mediador, Jesus Cristo, Filho de Deus. Somente o Mediador, Deus feito ser humano, pode chamar ao discipulado,
O discipulado sem Jesus Cristo é a escolha pessoal de um cami¬nho talvez ideal, um caminho, quem sabe, de martírio, mas não encerra promessa; Jesus o repudiará.
E seguiram para outra aldeia. Indo eles caminho fora, alguém lhe disse: Seguir-te-ei para onde quer que fores. Mas Jesus lhe respondeu: As ra¬posas têm seus covis e as aves do céu, ninhos; mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça. A outro disse Jesus: Segue-me. Ele, porém, respondeu: Permite-me ir primeiro sepultar meu pai. Mas Jesus insistiu: Deixa aos mortos o sepultar os seus próprios mortos. Tu, po¬rém, vai, e prega o reino de Deus. Outro lhe disse: Seguir-te-ei, Senhor; mas deixa-me primeiro despedir-me dos de casa. Mas Jesus lhe repli¬cou: Ninguém que, tendo posto a mão no arado, olha para trás, é apto para o reino de Deus. (Lc 9.56-62).
O primeiro discípulo oferece-se ele próprio para seguir a Jesus; não foi chamado, e a resposta de Jesus chama a atenção do entusiasta para o fato.de que este não sabe o que faz. Não o pode, mesmo, saber. É esse o sentido da resposta na qual a vida com Jesus é mostrada àquele discípulo em toda a sua realidade. Aqui fala aquele que está a caminho da cruz, cuja vida inteira é descrita no Credo Apostólico numa só pala¬vra: "padeceu". Isso ninguém pode querer por escolha própria. Ninguém pode chamar-se a si próprio, diz Jesus, e suas palavras ficam sem res¬posta. O abismo entre a oferta espontânea ao discipulado e o verdadeiro discipulado continua aberto.
Quando, porém, é o próprio Jesus que chama, ele lança uma ponte sobre o mais profundo abismo. O segundo discípulo quer enterrar seu pai antes de seguir a Jesus. É a lei que o prende. Ele sabe perfeitamente o que quer e o que lhe cabe fazer. Primeiro, é necessário cumprir a lei, depois seguirá o Mestre. Interpõe-se aqui, entre a chamada e Jesus, um mandamento claro da lei. A isso se contrapõe poderosamente o chama¬do de Jesus, e, portanto, sob hipótese alguma, algo deve interpor-se en¬tre Jesus e a pessoa chamada, nem que seja o que há de maior e mais sagrado - nem que seja a lei. Agora, por amor de Jesus, a lei que se pre¬tendia interpor tem que ser quebrada, pois, entre Jesus e aquele a quem ele chamou, ela já não possui quaisquer direitos. Assim, Jesus opõe-se aqui à lei e ordena o discipulado. Só Cristo pode falar assim; é sua a última pala¬vra; ninguém pode opor-se. Este chamado, essa graça são irresistíveis.
O terceiro compreende o discipulado como o primeiro, como oferta que só ele próprio pode fazer, como um programa de vida pessoal, auto-escolhido. Ao contrário do primeiro, porém, julga justo que, por seu turno, imponha condições. Assim procedendo, cai em total contradição. Quer ajuntar-se a Jesus e, ao mesmo tempo, interpõe algo entre si e o Mestre: "Deixa-me primeiro..." Quer segui-lo, mas quer, ele mesmo, impor as condições do discipulado. O discipulado é, para ele, uma pos¬sibilidade de cuja realização faz parte o cumprimento de condições e exigências prévias. Assim o discipulado transforma-se em algo huma¬namente acessível e compreensível. Primeiro, faz-se uma coisa, e de¬pois faz-se outra. Tudo tem sua legitimidade e seu tempo. O discípulo prontifica-se, mas, ao fazê-lo, tem o direito de impor condições. É evi¬dente que, nesse momento, o discipulado deixa de ser discipulado. Trans¬forma-se em programa de vida que eu faço de acordo com meu critério e posso justificar à luz da razão e da ética. O terceiro discípulo, portanto, quer ingressar no discipulado, mas, no momento em que o afirma, já não quer ser discípulo. Com sua oferta, ele próprio anula o discipulado, pois este não tolera quaisquer condições que possam se interpor entre Jesus e a obediência. O terceiro discípulo entra, portanto, em contradição não somente com Jesus, mas também consigo mesmo. Não quer o que Jesus quer, e também não quer o que ele próprio quer. Julga-se a si próprio, desentende-se consigo mesmo, e isso apenas ao dizer: “Deixa-me pri¬meiro..." A resposta de Jesus confirma figurativamente este conflito ín¬timo que exclui o discipulado: "Ninguém que, tendo posto a mão no arado, olha para trás, é apto para o reino de Deus."
Ser discípulo significa dar determinados passos. Já o primeiro passo que segue ao chamado separa o discípulo de sua existência anterior. Assim, o chamado ao discipulado cria imediatamente uma nova situação.
Permanecer na situação antiga e ser discípulo é impossível. A princípio isso era bem visível. O publicano teve que abandonar a coletoria; Pedro teve que largar as redes, para seguir a Jesus. Segundo nosso entendimento, teria havido outras soluções: Jesus poderia ter proporcionado ao publicano um novo conhecimento de Deus e permitir que ele continuas¬se em sua antiga situação. Isso seria possível se Jesus não fosse o Filho de Deus feito ser humano. Como, porém, Jesus é o Cristo, tinha que se tornar claro de antemão que sua mensagem não é uma doutrina, mas nova criação da existência. Tratava-se de caminhar realmente com Je¬sus. A pessoa que era chamada compreendia que, para ela, só havia uma possibilidade de fé em Jesus, a saber, abandonar tudo e ir com o Filho de Deus feito ser humano.




A verdadeira oração


Dietrich Bonhoeffer
 
- Jesus ensina os discípulos a orar. Sem dúvida, a oração é uma necessidade natural do coração humano, mas isso ainda não lhe empresta validade perante Deus. Mesmo quando praticada com disciplina e experiência, pode ser estéril e sem promessa. Os discípulos podem orar porque Jesus o diz a eles, ele que conhece o Pai. Dá-lhes a promissão de serem ouvidos por Deus. Assim os discípulos oram unicamente porque estão em comunhão com Jesus, em seu discipulado. Quem, no discipulado, está em comunhão com Jesus tem por ele acesso ao Pai. Assim, toda oração verdadeira é oração mediada. Nem mesmo na oração há acesso imediato ao Pai. Somente por meio de Jesus Cristo podemos, na oração, encontrar o Pai. O pressuposto para orar é a fé, a comunhão com Cristo. Ele é o único mediador de nossa oração. Oramos com base em sua palavra. Assim nossa oração será sempre oração vinculada à sua palavra.
 
“E, quando orarem, vocês não serão como os hipócritas; porque gostam de orar em pé nas sinagogas e nos cantos das praças, para serem vistos dos seres humanos. Em verdade lhes digo que eles já receberam a recompensa. Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto, e, fechada a porta, orarás a teu Pai que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará. E, orando, não usem de vãs repetições, como os gentios; porque presumem que pelo seu muito falar serão ouvidos. Não se assemelhem, pois, a eles; porque Deus, o seu Pai, sabe o de que vocês têm necessidade, antes que lho peçam”. (Mt 6.5-8). 
Oramos a Deus no qual cremos por Cristo. Por isso, a oração ja-mais será uma conjuração de Deus; não nos precisamos mais apresentar diante dele. Podemos confiar que ele sabe do que necessitamos antes que o pecamos. É isso que dá à oração confiança e alegre certeza. Não a fórmula, nem o número de palavras, e sim a fé tange o coração paterno de Deus, que há muito nos conhece.
A oração verdadeira não é uma obra, um exercício, uma atitude piedosa, mas simplesmente o pedido do filho ao coração do Pai. Por isso, uma oração jamais é demonstrativa nem perante Deus, nem perante nós mesmos, nem perante terceiros. Se Deus já não soubesse do que necessito, eu teria de ficar refletindo sobre como dizê-lo a Deus, o que dizer e até mesmo se vou dizê-lo a ele. Mas a fé na qual oro exclui qualquer reflexão, exclui qualquer demonstração.
A oração é o secreto absoluto. É totalmente oposta à publicidade. Quem ora já não conhece a si mesmo, mas somente a Deus a quem invoca. Como a oração não influi sobre o mundo, mas é dirigida unicamente a Deus, ela é a ação antidemonstrativa por excelência.
Entretanto, existe também a oração transformada na demonstração que revela o que está em secreto. Isto acontece não somente na oração pública que se transforma em palavreado. Tal fato será raro em nossos dias. Mas não há diferença, ao contrário, é bem mais pernicioso se me transformo eu mesmo em espectador de minha oração, quando oro diante de mim mesmo, seja desfrutando este estado como espectador satisfeito, seja surpreendendo a mim mesmo espantado ou envergonha¬do neste estado. A publicidade de rua não passa de uma forma mais ingênua da publicidade que eu mesmo me preparo. Também no recolhimento do quarto posso encenar-me uma vistosa demonstração. Até esse ponto é possível distorcer a palavra de Jesus! A publicidade que procuro consiste então no seguinte: eu sou o que ora e o espectador ao mesmo tempo. Sou meu próprio espectador, eu me ouço a mim mesmo. Por não querer esperar até que Deus me ouça, por não querer que, algum dia, Deus me revele que me ouviu, cuido eu mesmo do atendimento de minha oração. Constato que orei piedosamente, e nesta constatação consiste a satisfação do atendimento. Minha oração foi atendida. Já tenho a recompensa. Porque atendi a mim mesmo, Deus já não me atenderá; porque eu mesmo preparei a recompensa da publicidade, Deus já não me recompensará.
O que é o quarto a que Jesus se refere, se não estou seguro nem diante de mim mesmo? Como fechá-lo de tal forma que nenhum espectador venha perturbar o segredo da oração, levando-me a recompensa da oração em secreto? Como proteger-me contra mim mesmo, contra a tentação da reflexão? Como matar a reflexão pela reflexão? Está aí a palavra: a vontade própria de impor-se através da oração precisa morrer. Quando a vontade de Jesus reina exclusivamente em mim, e toda a minha vontade se resume na dele, na comunhão com Jesus, no discipulado, então morre a vontade própria. Posso então orar que se faça a vontade daquele que sabe do que necessito antes que eu o peça. Minha oração só será certeira, forte e pura quando emanar da vontade de Jesus. Então orar será realmente pedir. O filho pede ao pai, o qual conhece. Não a adoração geral, mas a prece é a essência da oração cristã. Isso corresponde à atitude do ser humano perante Deus, pedindo de mão estendida àquele que ele sabe ter um coração paternal.
A verdadeira oração é assunto secreto; isso não exclui, todavia, a comunhão de oração, mesmo conhecendo os perigos que esta encerra. A publicidade de rua e o quartinho, orações longas ou curtas, seja na litania da oração da Igreja, seja o suspiro de oração de quem não sabe o que orar, o indivíduo ou a congregação, nada disso é decisivo. O que importa unicamente é o reconhecimento: seu Pai sabe do que vocês necessitam. Isso orienta a oração exclusivamente para Deus. Isso livra o discípulo da hipocrisia das obras.
Portanto, vocês orarão assim: Pai nosso que estás nos céus, santificado seja o teu nome; venha o teu reino, faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu; o pão nosso de cada dia dá-nos hoje; e perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós temos perdoado aos nossos devedores; e não nos deixes cair em tentação; mas livra-nos do mal, pois teu é o reino, o poder e a glória para sempre. Amém. Porque se vocês perdoarem aos seres humanos as suas ofensas, também seu Pai celeste lhes perdoará; se, porém, não perdoarem aos seres humanos as suas ofensas, tampouco seu Pai lhes perdoará as suas ofensas. (Mt 6.9-15).
Jesus ensinou aos discípulos não somente como orar, mas também o que orar. O Pai-Nosso não é apenas um exemplo de oração para os discípulos. Jesus quer que eles orem como ele lhes ensinou. O Pai-Nosso é a oração por excelência. Toda oração dos discípulos tem nele sua substância e seus limites. Jesus não deixa os discípulos na incerteza; o Pai-Nosso lhes dá clareza total em assuntos de oração.




O sofrimento dos mensageiros


Dietrich Bonhoeffer



Fracasso e hostilidade não podem levar os mensageiros a duvidar de serem enviados por Jesus (Mt 10.16-25 – Texto no fim do artigo). Jesus repete, para forte apoio e grande conforto: "Eis que eu os envio!" Não se trata de caminho próprio, de empreendimento próprio; é missão. Assim o Senhor lhes dá a promessa de sua presença quando estiverem como ovelhas no meio de lobos, indefesos, impotentes, angustiados e em grande perigo. Nada lhes ocorrerá sem que Jesus o saiba. "Sejam, portanto, prudentes como as serpentes e símplices como as pombas." Como têm abusado dessa frase os servos de Jesus! De fato, é bem difícil, também para o mensageiro disposto, entender bem essa frase e obedecer-lhe. Quem saberia distinguir, em todos os casos, prudência espiritual da esperteza do mundo? A tendência imediata é a de renunciar a toda "prudência" e de ficar somente com a simplicidade das pombas, tornando-nos, assim, desobedientes. Quem determina o limite entre fuga do sofrimento por medo e procura do sofrimento por audácia? Quem nos mostra as linhas divisórias invisíveis?
Não há diferença quando, uma vez, argumentamos com a prudência contra a simplicidade, e, outra, com a simplicidade contra a prudência; em ambos os casos há a mesma desobediência. Como nestas coisas nenhum coração se conhece a si mesmo e como Cristo jamais chamou seus discípulos à incerteza, mas sempre à certeza suprema, esta admoestação não pode conduzir a outra coisa senão à permanência na Palavra. Onde estiver a Palavra, aí também esteja o discípulo; esta é sua verdadeira prudência e sua verdadeira simplicidade. Se a Palavra tiver que retroceder por ter havido rejeição manifesta, retroceda também o discípulo; se a Palavra permanecer em luta declarada, permaneça também o discípulo; em ambos os casos, agirá com prudência e simplicidade, ao mesmo tempo. Jamais, porém, escolha "por prudência" um caminho com o qual não poderá subsistir perante a Palavra de Jesus. Jamais justifique com "prudência espiritual" um caminho que não corresponde à Palavra. Somente a verdade da Palavra lhe ensinará o que é prudente. Jamais, porém, poderá ser "prudente" prejudicar a verdade, por pouco que seja, em consideração de qualquer perspectiva ou esperança humana. Não é nossa análise da situação que determina o que é prudente, mas exclusivamente a verdade da Palavra de Deus. Ser prudente só pode significar a permanência na verdade de Deus. Só então há promessa de fidelidade e ajuda de Deus. Ficará comprovado, em todos os tempos, que para os discípulos não há "maior prudência", nesta era e na vindoura, do que se aterem símplices à Palavra de Deus.
A partir da Palavra, os discípulos terão verdadeiro conhecimento dos seres humanos. "Acautelem-se dos seres humanos." Nada de temor das pessoas, nem desconfiança, muito menos ódio; mas também nada de credulidade leviana, nada de fé na bondade inata do ser humano, e sim conhecimento exato da relação Palavra-ser humano e da relação ser humano-Palavra deverão os discípulos demonstrar. Se forem sóbrios neste ponto, agüentarão o impacto das palavras de Jesus que lhes anunciam que seu caminho entre os seres humanos será caminho de sofrimento. Porém, uma força singular é inerente ao sofrimento dos discípulos. Enquanto o criminoso sofre o castigo no recolhimento, o caminho de sofrimento dos discípulos os conduzirá à presença de governadores e reis "por minha causa, para lhes servir de testemunho a eles e aos gentios". Através de sofrimento progredirá a mensagem. Isso é plano e vontade de Deus. Por isso, também os discípulos receberão força para uma boa confissão e um testemunho destemido, ao serem entregues a julgamento diante de tribunais e tronos. O próprio Espírito Santo lhes prestará assistência. Torná-los-á invencíveis. Ele lhes dará "sabedoria a que não poderão resistir nem contradizer todos quantos se opuserem a vocês" (Lc 21.15). Como os discípulos permanecem na Palavra na hora do sofrimento, a Palavra também permanecerá com eles. Martírio provocado não teria esta promissão. O sofrimento com a Palavra, porém, conta certamente com ela.
O ódio contra a palavra dos mensageiros de Jesus continuará até o fim de todas as coisas. Declarará os discípulos culpados de toda desavença que sobrevirá às cidades e aos lares. Jesus e seus discípulos serão condenados por todos como destruidores da família, sedutores do povo, como loucos entusiastas e subversivos. Com isso, a tentação para apostasiar alcançará o auge. Mas também o fim estará próximo, então. Vale permanecer fiel, agüentar, perseverar. Entrará na bem-aventurança somente quem perseverar com Jesus e sua Palavra até o fim. Quando, po¬rém, se aproximar o fim, quando estiver flagrante em todo o mundo a hostilidade contra Jesus e seus discípulos, então, mas somente então, deverão os mensageiros fugir de cidade em cidade, só para poder pregar a Palavra onde ainda for ouvida. Nem mesmo nesta fuga separam-se desta Palavra, mas atêm-se firmes a ela.
A promissão da proximidade da volta de Jesus nos foi conservada pela Igreja convicta de que ela é verdadeira. Seu cumprimento, porém, é obscuro, e não convém buscar explicações humanas neste caso. Uma coisa, porém, é certa, e isso é a única coisa que importa para nós hoje: que a volta de Jesus acontecerá em breve e que ela é mais certa do que a finalização de nossa missão a seu serviço, mais certa do que nossa morte. Em tudo isso, porém, não poderá haver consolo maior para os mensa¬geiros de Jesus do que a certeza de que serão iguais ao seu Senhor no seu sofrimento. Qual mestre, tal discípulo; qual Senhor, tal servo. Se Jesus for chamado Belzebu, quanto mais serão os servos de sua casa. Jesus estará com eles, e eles serão em tudo iguais a Cristo.
Texto
Eis que eu os envio como ovelhas para o meio de lobos; sejam, portanto, prudentes como as serpentes e símplices como as pombas. E acautelem-se dos seres humanos; porque os entregarão aos tribunais e os açoitarão nas suas sinagogas; por minha causa vocês serão levados à presença de governadores e de reis, para lhes servir de testemunho, a eles e aos gentios. E, quando os entregarem, não cuidem em como, ou o que hão de falar, porque naquela hora lhes será concedido o que hão de dizer; visto que não são vocês os que falam, mas o Espírito do seu Pai é quem fala em vocês. Um irmão entregará à morte outro irmão, e o pai ao filho; filhos haverá que se levantarão contra os progenitores e os matarão. Vocês serão odiados de todos por causa de meu nome; aquele, porém, que perseverar até o fim, esse será salvo. Quando, porém, os perseguirem numa cidade, fujam para outra; porque em verdade lhes digo que não acabarão de percorrer as cidades de Israel, até que venha o Filho do homem. O discípulo não está acima do seu mestre, nem o servo acima do seu senhor. Basta ao discípulo ser como o seu mestre, e ao servo como o seu senhor. Se chamaram Belzebu ao dono da casa, quanto mais aos seus domésticos?


Barata ou Preciosa?

O pastor Dietrich Bonhoeffer foi martirizado aos 39 anos pelos Nazistas.

A graça barata é a inimiga mortal de nossa Igreja. A nossa luta trava-se hoje em torno da graça preciosa.
Graça barata é graça como refugo, perdão malbaratado, consolo malbaratado, sacramento malbaratado; é graça como inesgotável tesouro da Igreja, distribuído diariamente com mãos levianas, sem pensar e sem limites; a graça sem preço, sem custo. A essência da graça seria justamente que a conta foi liquidada antecipadamente e para todos os tempos. Estando a conta paga, pode-se obter tudo gratuitamente. Por ser infinitamente grande o preço pago, são também infinitamente grandes as possibilidades de uso e dissipação. Que seria a graça se não fosse barata?
Graça barata significa a graça como doutrina, como princípio, como sistema; significa perdão dos pecados como verdade geral, significa o amor de Deus como conceito cristão de Deus. Quem o aceita já tem o perdão de seus pecados. A Igreja participa da graça já pelo simples fato de ter essa doutrina da graça. Nesta Igreja, o mundo encontra fácil cobertura para seus pecados dos quais não tem remorsos e não deseja verdadeiramente libertar-se. A graça barata é, por isso, uma negação da Palavra viva de Deus, negação da encarnação do Verbo de Deus.
Graça barata significa justificação do pecado, e não do pecador. Como a graça faz tudo sozinha, tudo também pode permanecer como antes. "Afinal, a minha força nada faz." O mundo continua sendo mundo, e nós continuamos sendo pecadores "mesmo na vida mais piedosa". Viva, pois, o crente como vive o mundo, coloque-se, em tudo, em pé de igualdade com o mundo, e não se atreva - sob pena de ser acusado de heresia entusiasta! - a ter, sob a graça, uma vida diferente da que tinha sob o pecado! Que se guarde de encolerizar-se contra a graça, de envergonhar essa graça grande e barata, e de instituir um novo culto do literalismo tentando ter uma vida de obediência de acordo com os mandamentos de Jesus Cristo!
O mundo é justificado pela graça, e, por isso - por amor da seriedade dessa graça, para que não haja resistência a essa graça insubstituível! - que o cristão viva como o resto do mundo! E certo que ele gostaria de realizar algo de extraordinário, e constitui, sem dúvida, um grande sacrifício não poder fazê-lo, mas ter que viver mundanamente. Contudo, ele precisa fazer esse sacrifício, praticar a autonegação, renunciar a uma vida que se distinga da do mundo. Tem que deixar a graça ser realmente graça, para não destruir ao mundo a fé nessa graça barata. Todavia, que o crente, em seu mundanismo, nessa renúncia necessária que tem de fazer por amor do mundo - não, por amor da graça! - continue consolado e seguro (securus) na posse dessa graça, que tudo opera sozinha! Por isso, que o crente não seja discípulo, antes se console com a graça! Isto é graça barata como justificação do pecado, mas não justificação do pecador penitente, que abandona o pecado e se arrepende; não é o perdão que separa do pecado. A graça barata é a graça que nós dispensamos a nós próprios.
A graça barata é a pregação do perdão sem arrependimento, é o batismo sem a disciplina comunitária, é a Ceia do Senhor sem confissão dos pecados, é a absolvição sem confissão pessoal. A graça barata é a graça sem discipulado, a graça sem a cruz, a graça sem Jesus Cristo vivo, encarnado.
A graça preciosa é o tesouro oculto no campo, por amor do qual o ser humano sai e vende com alegria tudo quanto tem; a pérola preciosa, para cuja aquisição o comerciante se desfaz de todos os seus bens; o senhorio régio de Cristo, por amor do qual o ser humano arranca o olho que o faz tropeçar; o chamado de Jesus Cristo, pelo qual o discípulo larga suas redes e o segue.
A graça preciosa é o Evangelho que se deve procurar sempre de novo, o dom pelo qual se tem que orar, a porta à qual se tem que bater.
Essa graça é preciosa porque chama ao discipulado, e é graça por chamar ao discipulado de Jesus Cristo; é preciosa por custar a vida ao ser humano, e é graça por, assim, lhe dar a vida; é preciosa por condenar o pecado, e é graça por justificar o pecador. Essa graça é sobretudo preciosa por ter sido preciosa para Deus, por ter custado a Deus a vida de seu Filho - "vocês foram comprados por preço" - e porque não pode ser barato para nós aquilo que custou caro para Deus. A graça é preciosa sobretudo porque Deus não achou que seu Filho fosse preço demasiado caro para pagar pela nossa vida, antes o deu por nós. A graça preciosa é a encarnação de Deus.
A graça preciosa é a graça como santuário de Deus, que tem que ser preservado do mundo, não lançado aos cães; e por isso é graça como palavra viva, a Palavra de Deus que ele próprio pronuncia de acordo com seu beneplácito. Chega até nós como gracioso chamado ao discipulado de Jesus; vem como palavra de perdão ao espírito angustiado e ao coração esmagado. A graça é preciosa por obrigar o indivíduo a sujeitar-se ao jugo do discipulado de Jesus Cristo. As palavras de Jesus: "O meu jugo é suave e o meu fardo é leve" são expressão da graça.
Por duas vezes Pedro ouviu o chamado: "Segue-me!" Foi esta a primeira e a última palavra de Jesus a seu discípulo (Mc 1.17; Jo 21.22). Toda sua vida se situa entre esses dois chamados. Da primeira vez, Pedro, no Lago de Genesaré, ao ouvir o chamado de Jesus, largara as redes e abandonara a profissão, seguindo a Jesus em obediência cega. Da última vez, é o Ressurreto que o encontra em seu antigo ofício, novamente no Lago de Genesaré; e mais uma vez o chamado é: "Segue-me!" No espaço entre esses dois chamados, havia toda uma vida de discipulado de Cristo. No meio dela encontra-se a confissão de que Jesus é o Cristo de Deus. Por três vezes a mesma mensagem foi anunciada a Pedro, no início, no fim e em Cesaréia de Filipe, ou seja, a mensagem de que Cristo é seu Senhor e Deus. A graça de Cristo que chama: "Segue-me!" é a mesma que se revela a Pedro em sua confissão do Filho de Deus.
Houve, pois, uma intervenção tripla da graça no caminho de Pedro, a mesma graça proclamada em três ocasiões diferentes; ela era, assim, de fato a graça do próprio Cristo e não a graça que Pedro atribuía a si mesmo. Foi essa mesma graça de Cristo que venceu esse discípulo, levando-o a largar tudo por amor do discipulado; foi ela que o impeliu a uma confissão blasfema aos ouvidos do mundo; foi ela que chamou o infiel Pedro à comunhão derradeira, a do martírio, pelo que lhe foram perdoados todos os pecados. A graça e o discipulado permanecem indissoluvelmente ligados na vida de Pedro. Ele havia recebido graça preciosa.
Com a expansão do cristianismo e a secularização crescente da Igreja, a consciência dessa graça preciosa perdeu-se gradualmente. O mundo estava cristianizado, a graça passara a ser propriedade comum de um mundo cristão. Tinha-se tornado barata. No entanto, a Igreja Romana conservava um último resto desta consciência. Foi de significado decisivo o fato de o monasticismo não se ter separado da Igreja, e de esta ter sido suficientemente sábia para o tolerar. Ali, na periferia da Igreja, estava o lugar no qual se mantinha viva a consciência da preciosidade da graça, e de que esta encerra em si o discipulado. Por amor de Cristo, homens e mulheres abandonavam tudo quanto possuíam, procurando cumprir os severos mandamentos de Jesus na prática diária. Foi assim que a vida monástica se transformou num protesto vivo contra a secularização do cristianismo, contra o barateamento da graça. Todavia, pelo próprio fato de ter tolerado esse protesto e de ter evitado uma cisão defi¬nitiva, a Igreja o relativizou, encontrando nele até a justificação de sua própria vida mundana; pois agora a vida monástica transformava-se numa realização especial de caráter individual, realização essa que não poderia ser exigida à massa do povo cristão.
A limitação fatal do mandamento de Jesus a um grupo limitado de indivíduos de qualidades excepcionais levou à distinção entre uma realização máxima e uma realização mínima na esfera da obediência cristã. Assim, a cada ataque renovado contra a secularização da Igreja, podia-se apontar para a possibilidade da vida monástica dentro da mesma Igreja, ao lado da qual se justificava plenamente a outra possibilidade do caminho mais fácil. Desse modo, apelar para o conceito que a Igreja primitiva tinha da preciosidade da graça - conceito que ficara preservado no monasticismo da Igreja Romana - teve que servir, paradoxalmente, uma vez mais como justificação final da secularização da Igreja. Em tudo isso, o erro decisivo do monasticismo não residia no fato de - a despeito de tantos mal-entendidos quanto ao conteúdo da vontade de Jesus - ter seguido o gracioso caminho do discipulado rigroso. Antes, o monasticismo distanciou-se essencialmente do cristianismo por se deixar transformar ele próprio na realização excepcional, voluntária, de uns poucos, reivindicando, assim, mérito especial para si.
Quando, por intermédio do seu servo Martim Lutero, na Reforma, Deus avivou uma vez mais o Evangelho da graça pura e preciosa, fez com que Lutero passasse primeiro pelo convento. Lutero era monge. Tudo abandonara e desejava seguir a Cristo em obediência perfeita. Renunciou ao mundo e dedicou-se à obra cristã. Aprendeu a obediência a Cristo e à sua Igreja, pois sabia que somente o obediente é que pode crer. O chamado para o convento custou a Lutero a total consagração de sua vida. Com o caminho escolhido, Lutero fracassou em relação ao próprio Deus. Este lhe mostrou, através das Escrituras, que o discipulado de Jesus não era a realização meritória de alguns, mas um mandamento divino a todos os cristãos. A humilde obra do discipulado convertera-se, no monasticismo, numa realização meritória dos santos. A autonegação do seguidor revelou-se nele como a derradeira auto-afirmação espiritual dos piedosos. Foi assim que o mundo se infiltrou no seio da vida monástica, mostrando-se de novo perigosamente ativo. A fuga do mundo revelara-se como a mais refinada forma de amor ao mundo.
Nesse fracasso da última possibilidade de uma vida piedosa, Lutero foi alcançado pela graça. Viu no colapso do mundo monástico a mão salvadora de Deus estendida em Cristo. A ela se agarrou, certo de que "nossos esforços nada podem nem mesmo na vida mais piedosa". Foi a graça preciosa que lhe foi dada, e ela lhe despedaçou toda a sua existência. Teve que largar uma vez mais as suas redes e seguir o Mestre. Da primeira vez, quando fora para o convento, abandonara tudo - menos a si mesmo, seu eu piedoso. Desta vez, até isso lhe foi tirado. Não seguiu o Mestre por mérito próprio, mas baseado na graça de Deus. Não lhe foi dito: "E certo que pecaste, mas tudo já está perdoado; permanece onde estás e consola-te no perdão." Lutero teve que abandonar o convento e regressar ao mundo, não porque este, em si, fosse bom e santo, mas sim porque também o convento nada mais era do que mundo.
O caminho de Lutero para fora do convento e de volta ao mundo constitui o ataque mais incisivo que o mundo sofreu desde os tempos da primeira Igreja. A renúncia do monge ao mundo é brincadeira comparada à renúncia que o mundo experimentou por parte daquele que a ele regressara. O ataque agora era frontal; o discipulado de Jesus passaria a ser vivido no seio do mundo. Aquilo que, em circunstâncias especiais e com as facilidades da vida monástica, era praticado como realização especial passava agora a ser algo necessário, ordenado a cada cristão no mundo. A obediência perfeita ao mandamento de Cristo deveria acontecer na vida profissional de todos os dias. Assim se aprofundou de forma imprevisível o conflito entre a vida do cristão e a do mundo. O cristão atacava o mundo de perto; era uma luta corpo a corpo.
Mal entendido mais funesto não pode ocorrer na interpretação da obra de Lutero do que supor que ele tivesse proclamado, com o descobrimento do Evangelho da graça pura, uma dispensa da obediência ao mandamento de Jesus no mundo, ou que a descoberta da Reforma tivesse sido a canonização, a justificação do mundo mediante a graça que tudo perdoa. No conceito de Lutero, porém, a profissão secular do cristão tem sua justificação apenas no fato de nela o protesto contra o mundo atingir a sua máxima intensidade. A vocação secular do cristão recebe nova legitimidade a partir do Evangelho somente na medida em que é exercida no discipulado de Jesus. Não a justificação dos pecados, mas sim a do pecador é que levou Lutero a sair do convento. Lutero recebera a graça preciosa. Graça, por ser água sobre a terra sedenta, consolo na angústia, libertação da escravidão do caminho auto-escolhido, perdão de todos os pecados. Graça preciosa por não isentar ninguém da obra, antes chamando com insistência ainda maior ao discipulado. Mas justamente naquilo em que era preciosa é que ela era graça, e no que era graça, era preciosa. Era este o segredo do Evangelho da Reforma, o segredo da justificação do pecador.
No entanto, o vencedor da história da Reforma não é o reconhecimento de Lutero a respeito da graça pura e preciosa, mas sim o apurado instinto religioso do ser humano para descobrir onde é que a graça pode ser conseguida mais barata. Bastou um deslocamento muito ligeiro, quase imperceptível, da ênfase, para se consumar a obra mais perigosa e destrutiva. Lutero ensinava que, mesmo nos caminhos e obras mais piedosos, o ser humano não poderia subsistir perante Deus porque, no fundo, procura-se sempre a si próprio. Em face disso, ele próprio agarrara-se, na fé, à graça do livre e incondicional perdão de todos os pecados. Ao fazê-lo, Lutero sabia que essa graça lhe custara toda uma vida - e ainda lhe custava diariamente, pois a graça não o dispensara do discipulado, antes era agora que estava verdadeiramente comprometido com ele. Ao falar da graça, Lutero referia-se implicitamente à sua própria vida, vida que somente através da graça fora colocada na obediência plena a Cristo. Não podia falar da graça de outra maneira.
A graça tudo faz, dissera Lutero, e seus seguidores repetiam-lhe literalmente essa afirmação; com uma diferença, porém: muito em breve, deixaram de fora, deixaram de pensar e dizer aquilo que para Lutero sempre estava implícito em seu pensamento: o discipulado, aquilo que ele já não precisava dizer expressamente, pois falava sempre como pessoa a quem a graça conduzira ao mais árduo discipulado de Jesus. A doutrina de seus seguidores era, assim, inatacável do ponto de vista da doutrina de Lutero, e, no entanto, foi seu ensino que resultou no fim e na destruição do movimento reformatório como revelação da graça preciosa de Deus na terra. A justificação do pecador no mundo transformou-se em justificação do pecado e do mundo. A graça preciosa transformou-se em graça barata sem discipulado.
Quando Lutero afirmava que nossos esforços nada podem nem mesmo na vida mais piedosa e que, por isso, aos olhos de Deus, nada vale senão "a graça e o favor do perdão", dizia-o como alguém que até então e naquele mesmo momento se sentia novamente chamado ao discipulado de Jesus e a deixar tudo o que tinha. O reconhecimento da graça foi para ele a última ruptura radical com o pecado de sua vida, jamais, porém, a justificação do pecado. Na aceitação do perdão, esse reconhecimento foi a última renúncia radical à vida sob orientação própria, e, por isso, só então tornou-se um chamado sério ao discipulado. A graça era para Lutero um "resultado", mas um resultado divino, não humano.
Esse resultado, porém, foi transformado por seus sucessores em premissa básica para um cálculo. Nisso consiste todo o desastre. Se a graça é o "resultado" da vida cristã, dado pelo próprio Cristo, então esta vida não está dispensada, um único momento sequer, do discipulado. Se, porém, a graça constituir premissa básica de minha vida cristã, então tenho nela, antecipadamente, a justificação dos pecados que cometer durante minha vida no mundo. Posso agora pecar apostando nessa graça, pois o mundo está, em princípio, justificado por ela. Permaneço, por isso, em minha existência de cidadania mundana como até agora; tudo fica como antes, e posso viver na certeza de que a graça de Deus me encobre. O mundo inteiro tornou-se "cristão" à sombra dessa graça, mas o cristianismo mundanizou-se sob essa graça como nunca. Desapareceu o conflito entre a vida cristã e a vida profissional de cidadão mundano. A vida cristã consiste em viver no mundo e tal qual o mundo, sem dele me distinguir, seja no que for, nem devendo - por amor da graça - distinguir-me dele, embora, em determinadas oportunidades, eu saia do mun¬do para entrar no âmbito da Igreja, para aí me assegurar do perdão dos pecados. Estou dispensado do discipulado de Jesus - mediante a graça barata, que é inevitavelmente o mais acerbo inimigo do discipulado, e que necessariamente odeia e ultraja o verdadeiro discipulado. A graça como premissa inicial é graça da mais barata; a graça como resultado é a graça preciosa. É assustador reconhecer o quanto depende da forma como uma verdade evangélica é expressa e posta em prática. É a mesma men¬sagem da justificação tão-somente pela graça; no entanto, a má utilização dessa mensagem conduz à completa destruição de sua essência.
Quando o Dr. Fausto, após uma vida dedicada à pesquisa do conhecimento, diz: "Vejo que nada podemos saber", estamos diante dum resultado, algo completamente diferente do sentido que esta mesma frase teria se pronunciada por um estudante de primeiro semestre, para justificar sua preguiça (Kierkegaard). Como resultado, essa frase é verdadeira, mas, como ponto de partida, é uma ilusão. Isso significa que o conhecimento adquirido não pode ser separado da existência em que foi obtido. Somente quem se encontra no discipulado de Jesus, renunciando a tudo quanto possuía, pode dizer que é justificado tão-somente pela graça. Essa pessoa vê o próprio chamado ao discipulado como sendo graça, e a graça como sendo esse chamado. Engana-se, porém, a si próprio quem se julga por ela dispensado do discipulado.
Mas não teria o próprio Lutero se aproximado perigosamente desta total perversão da compreensão da graça? Como entender a frase de Lutero: Peccafortiter, sed fortius fide et gaude in Christo - "Peca com coragem, mas crê com coragem ainda maior e alegra-te em Cristo"? (Enders III, p. 208, 118ss.). Isso significaria: afinal, tu és pecador e nada podes fazer para te livrar do pecado; quer sejas monge, quer mundano, quer pretendas ser justo, quer sejas ímpio, não conseguirás escapar à armadilha do mundo; pecas. Peca, pois, com coragem justamente baseando-te na graça já acontecida, é claro. Estaríamos nós diante da proclamação aberta da graça barata, da carta branca ao pecado, da abolição do discipulado? Estaríamos diante do convite blasfemo de pecar à vontade, confiados na graça? Haverá afronta mais diabólica contra a graça do que pecar confiado na graça que Deus nos concedeu? Não terá razão o Catecismo católico ao reconhecer neste pecado o pecado contra o Espírito Santo?
Para compreender bem esta relação, tudo depende da distinção entre resultado e premissa. Se a frase de Lutero for encarada como premissa duma teologia da graça, então está proclamada a graça barata. Mas a verdadeira compreensão da frase de Lutero consiste em vermos nela não o princípio, mas exclusivamente o fim, o resultado, a pedra final, a palavra derradeira. Encarado como premissa, peccafortiter transforma-se em princípio ético; ao princípio peccafortiter deve corresponder o princípio graça. Isso é justificação do pecado, uma inversão da frase de Lutero. "Peca com coragem" - isso, para Lutero, somente podia ser o informe derradeiro, a consolação para a pessoa que, no caminho do discipulado, reconhece não conseguir libertar-se do pecado e que, amedrontada pelo pecado, já não consegue confiar na graça de Deus. Para ele, "peca com coragem" não é uma confirmação fundamental da sua vida em desobediência, mas Evangelho da graça de Deus, perante o qual somos, sempre e em todas as circunstâncias, pecadores, e o Evangelho que nos busca e justifica justamente na qualidade de pecadores. Confessa corajosamente teu pecado; não procures fugir dele, porém, "crê com coragem ainda maior". És pecador e, portanto, continua sendo-o. Não queiras ser qualquer outra coisa senão aquilo que és; sim, sê pecador todos os dias e, não obstante, sê corajoso. Mas a quem se poderá dizer isso senão à pessoa que, diariamente, repudia seu pecado com todas as forças de seu coração, que, diariamente, renuncia a tudo que lhe serve de empecilho no discipulado de Jesus e que, no entanto, permanece inconsolável por causa de sua infidelidade e pecado cotidianos? Quem poderá ouvir isso sem risco para sua fé, senão a pessoa que, por tal consolo, se sabe renovadamente chamada ao discipulado de Cristo? Assim a frase de Lutero, entendida como resultado, transforma-se na graça preciosa, a única que é verdadeiramente graça.
A graça como princípio, pecca fortiter como princípio, a graça barata é, no fim das contas, apenas uma nova lei que em nada ajuda e que não liberta. A graça como palavra viva, pecca fortiter como consolo na tribulação e chamado ao discipulado, a graça preciosa, só ela é graça pura, que realmente traz perdão e liberta o pecador.
Como corvos nos reunimos em torno do cadáver da graça barata e dela recebemos o veneno devido ao qual o discipulado de Jesus morreu em nosso meio. A doutrina da graça pura passou, de fato, por uma apoteose incomparável, a doutrina pura da graça tornou-se ela mesma Deus, tornou-se ela mesma graça. Em toda parte, as citações de Lutero, e, no entanto, a verdade convertida em ilusão! Se a Igreja possui, pelo menos, a doutrina da justificação, então é, sem dúvida, uma Igreja justificada, diz-se. Assim, a verdadeira herança luterana seria o maior barateamento possível da graça. Ser luterano seria deixar o discipulado de Jesus aos legalistas, aos reformados ou aos entusiastas, tudo por amor da graça; seria justificar o mundo e transformar em herege o cristão que enveredasse pelo caminho do discipulado. Cristianizara-se, luteranizara-se um povo inteiro, porém, às expensas do discipulado, a um preço demasiadamente barato. Triunfara a graça barata.
Mas saberemos também que esta graça barata foi extremamente cruel para nós? O preço que hoje temos que pagar com o colapso das igrejas organizadas será qualquer outra coisa senão uma conseqüência necessária do barateamento da graça? Tornaram-se baratos a mensagem e os sacramentos; batizou-se, confirmou-se, absolveu-se todo um povo sem perguntas nem condições; por humanitarismo, deu-se o santuário aos zombadores e incrédulos, dispensaram-se rios sem fim de graça, mas o chamado ao discipulado rigoroso de Cristo ouvia-se cada vez mais raramente. Onde ficaram as percepções da Igreja primitiva que, na catequese do batismo, tinha tanto cuidado em vigiar a fronteira entre a Igreja e o mundo, em vigiar a graça preciosa? Onde ficaram os avisos de Lutero contra a proclamação de um evangelho que garantia segurança aos seres humanos em sua vida sem Deus? Quando foi o mundo mais cruelmente e mais desapiedadamente cristianizado do que aqui? Que são os 3 mil saxões assassinados segundo o corpo por Carlos Magno, comparados com os milhões de almas mortas na atualidade? Acontece que os pecados dos pais estão sendo castigados nos filhos até a terceira e quarta geração. A graça barata foi muito cruel para nossa Igreja Evangélica.
A graça barata decerto foi também cruel pessoalmente para a maioria de nós. Não nos abriu, antes fechou o caminho para Cristo. Não nos chamou ao discipulado, antes nos endureceu na desobediência. Ou não foi crueldade quando tendo, quem sabe, escutado o chamado ao discipulado de Jesus como o chamado da graça de Cristo, tendo mesmo arriscado os primeiros passos do discipulado na disciplina da obediência ao mandamento, fomos assaltados pela mensagem da graça barata? Pudemos nós interpretar essa mensagem de outra forma senão que o que ela pretendia era deter-nos no caminho, chamando a um bom senso tão mundano, sufocando em nós a alegria do discipulado ao sugerir que tudo não passava de um caminho escolhido por nós mesmos, um dispêndio de energias, esforços e disciplina desnecessário e, até mesmo, muito perigoso, pois na graça tudo já estaria pronto e consumado? O pavio fumegante foi desapiedadamente extinto. Foi cruel falar assim a um ser humano porque ele, desorientado por uma oferta tão barata, iria necessariamente abandonar seu caminho - o caminho para o qual Cristo o chamara - para, agora, agarrar-se à graça barata que o privou, para sempre, do conhecimento da graça preciosa. Era inevitável que o ser humano enganado e fraco se sentisse subitamente forte na posse da graça barata, quando, na realidade, havia perdido a força para a obediência, para o discipulado. A mensagem da graça barata tem arruinado mais cristãos do que qualquer mandamento de obras.
Em tudo que segue, queremos falar em nome de todas as pessoas que estão atribuladas e para as quais a palavra da graça se tornou assustadoramente vazia. Por amor da verdade, essa palavra tem que ser pronunciada em nome daqueles entre nós que reconhecem que, devido à graça barata, perderam o discipulado de Cristo e, junto com o discipulado de Cristo, a compreensão da graça preciosa. Simplesmente por não querermos negar que já não estamos no verdadeiro discipulado de Cristo, que somos, é certo, membros de uma Igreja ortodoxamente crente na doutrina da graça pura, mas não membros de uma Igreja do discipulado, é preciso tentar compreender de novo a graça e o discipulado em sua verdadeira relação mútua. Já não ousamos mais fugir ao problema. Cada vez se torna mais evidente que o problema da Igreja se resume nisso: como viver hoje uma vida cristã?
Felizes aqueles que se encontram já no fim do caminho que pretendemos percorrer e que, com espanto, compreendem o que de fato parece incompreensível: que a graça é preciosa justamente por ser graça pura, por ser a graça de Deus em Jesus Cristo! Felizes aqueles que, no singelo discipulado de Jesus, se encontram possuídos por essa graça, podendo, humildes em espírito, louvar a graça de Cristo que tudo opera! Felizes aqueles que, no conhecimento desta graça, podem viver no mundo sem para ele se perderem, e para os quais, no discipulado de Cristo, a pátria celestial é uma certeza tal que estão verdadeiramente livres para a vida neste mundo! Felizes aqueles para os quais o discipulado de Jesus Cristo nada mais é senão a vida baseada na graça, e para os quais a graça nada mais é senão o discipulado! Felizes aqueles que, neste sentido, se tornaram cristãos para os quais a mensagem da graça foi misericórdia!